Nos últimos anos, nosso país passou por uma grande transformação no setor agrícola. Um dos grandes eixos do desenvolvimento foi a criação de programas governamentais específicos de fortalecimento da agricultura familiar, através da oferta de financiamentos a juros subsidiados pelo governo, com largos prazos para pagamento. Ocorre que um dos reveses de qualquer política pública baseada em subsídios é a tênue linha que a separa do mero assistencialismo. Em outras palavras, para o desenvolvimento da agricultura familiar não basta somente ao governo ofertar aos agricultores crédito (financiamento) fácil, barato e acessível. É preciso também ações governamentais concretas no sentido de enfrentar as características volúveis do mercado, visando garantir ao agricultor um justo preço no momento da comercialização de sua produção, para que este obtenha uma remuneração digna por seu trabalho. Como e de que forma? Não sei. Que o digam os especialistas da área.
Fez-se necessário este breve prólogo para adentrar especificamente ao tema proposto. Neste sentido, é importante ressaltar a questão da garantia hipotecária instituída sobre a propriedade rural, que geralmente passa “batida” pelo agricultor familiar no momento de contrair um financiamento agrícola. Um dos principais aspectos de divergência no tema reside quanto à penhorabilidade ou não do imóvel destinado à agricultura familiar, dado “livremente” em garantia da dívida contraída. Explico: é fato público e notório (menos para uma parcela do Poder Judiciário), que, na prática bancária, em raras ocasiões o “livremente” é a exteriorização verdadeira da vontade do tomador do financiamento, do agricultor. Nas entrelinhas, a garantia bancária exigida é a propriedade rural; sem ela, dificilmente conseguir-se-á a liberação do crédito.
O grande problema da questão é o entendimento jurisprudencial amplamente majoritário favorável à possibilidade de expropriação do imóvel rural ofertado como garantia da dívida contraída, em caso de inadimplemento (excluindo-se a má-fé de alguns). Em outros termos, ou o agricultor familiar honra o pagamento do crédito tomado, ou corre o risco de perder seu bem imóvel, mesmo que este seja o único bem em seu nome, para quitação da dívida.
Constitui-se como argumento para aqueles favoráveis a expropriação do imóvel rural, a exceção disposta no inciso V do art. 3º da Lei Federal n.° 8.009/90, que dispõe: “(...) Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo (...) salvo se movido: (...) V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar (...)”. Daí decorre o entendimento de que se o imóvel foi “livremente” oferecido como garantia, não tem como querer depois declará-lo impenhorável. Contudo, respectivo entendimento confronta-se diretamente para com os ditames da Constituição Federal da República, especificamente o inciso III do Artigo 1º, que proclama: “A República Federativa do Brasil (...) tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana (...)”, combinado com o inciso XXVI do art. 5º: “(...) XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento (...)”.
Da leitura dos dispositivos constitucionais e legais acima mencionados, constata-se o absurdo que representa a defesa da penhorabilidade e da expropriação da pequena propriedade rural em caso de dívidas decorrentes de sua atividade produtiva. Isto porque a própria Constituição Federal reservou-se o direito de garantir a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, não autorizando jamais uma lei de hierarquia inferior dispor o contrário. Não há argumentos que autorizem a expropriação. Ademais, dentro do espírito do texto constitucional, não há como justificar a aplicação de uma exceção ordinária altamente favorável ao sistema financeiro, pendendo uma vez mais a balança símbolo da Justiça para o lado em que reside o poder econômico e financeiro do país, em detrimento da expoliada classe agrícola.